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  • Foto do escritor@ana_rizek_sheldon

CAMINHO, RELAÇÃO E ENCONTRO


Foto: Acervo Bankoma

14 de fevereiro de 2021


Pandemia de Sars-Cov-2: Ano II


Segunda-feira de um Carnaval enlutado.


Peço licença para expor este pequeno texto.


Carnaval é encontro. Carnaval é disputa. Carnaval é luta e risco situados nas existências de pessoas e em suas relações com outros seres. Com suas histórias, belezas, violências. O carnaval carrega histórias de resistências à demonização de valores que escapam à moral cristã e à criminalização de práticas afroindígenas. Ele encarna a beleza dos movimentos de alegria radical que unem desobediência e inventividade coletiva no encontro festivo a despeito da matemática racista que distribui confete e porrada de cassetete, delícias e casos de polícia.


Em 2020, os encontros, fluxos e deslocamentos se mostraram de outros modos por conta da junção entre vírus e pessoas, propiciado pelo desequilíbrio climático decorrente de um modo de vida ligado ao consumo destruidor de mundos. Destruição que é realizada em nome de uma pequena parcela de seres humanos, que exclui comunidades tradicionais, indígenas, quilombolas e pesqueiras, ou seja, pessoas que reconhecem e reverenciam cotidianamente em suas práticas a importância fundamental da terra, dos rios, dos mares e matas que os sustentam e sem os quais suas vidas não existiriam.


No ano passado, o encontro com um vírus fez de nós seus hospedeiros, redimensionou valores e relações vitais de maneira global e local. A presença das pessoas se expandiu, passou a englobar seus deslocamentos físicos, objetos e locais tocados com as mãos, além de outros rastros como o ar da respiração que desenharam a malha intrincada marcada pela propagação do vírus. Dispositivos virtuais foram acionados. Questões que antes eram consideradas escolhas pessoais adquiriram graves consequências coletivas. O essencial foi colocado em questão diante de tantas mortes e perdas.


A pandemia aguçou desigualdades antigas, enfatizou as condições de existência em suas diferentes necessidades e urgências, mas não mudou algo fundamental na maneira como vivemos: a corda sempre arrebenta no lado mais fraco. E que corda é essa? A mesma que faz da festa mero lucro, lavando as lantejoulas do brilho de lutas e embates históricos e separando os foliões nos circuitos turísticos e comerciais do carnaval de Salvador entre camarote, bloco e pipoca. Carnaval é disputa que posiciona cada bloco em relação a sua própria memória e a história de outros carnavais. Não existe posição de neutralidade.


No vídeo de abertura do Carnaval 2021 do Bloco Afro Bankoma (disponível em: www.youtube.com/watch?v=BubQQMLwIvE&t=247s), Mãe Lúcia - a Mameto Kamurici, Mameto de Nkise do Terreiro São Jorge Filho da Goméia e atual presidente do Bloco Afro Bankoma - conta que a agremiação nasceu como caminho trazido pela energia de Martin Pescador. Em 2000, o terreiro oferecia diversos cursos à comunidade de Portão, onde está localizado (zona metropolitana de Lauro de Freitas, cidade vizinha da capital baiana). Os cursos oferecidos, como tecelagem, música, dança e confecção de adereços, resultavam numa produção que passou a ser mostrada nos desfiles com a criação do bloco. Como bem narra a matriarca, o projeto é trazido como uma missão, caminho, legado e referência de Bloco Afro como relação maior com a sociedade, com a divindade, com o terreiro e com a alegria. Martin Pescador traz também o símbolo da identidade visual do bloco, relacionado ao símbolo bakongo que é o círculo vital que oferece leituras acerca das mudanças da vida e do que é vivo em momentos como concepção, nascimento, amadurecimento e férias. O nome Bankoma - palavra de origem bantu que quer dizer pessoas, gente em festa, em alegria, comemorando a vida - também é trazido pela energia de seu Martin, assim como temas cantados nos dias de festa. O bloco é, então, um modo de conexão com a comunidade, com um legado ancestral e com energias cultuadas coletivamente.


Tive a honra de encontrar seu Martin Pescador em uma feliz e inesperada ocasião. A sua alegria contagiante e seu modo de agir acolhedor de quem aprecia boas amizades são inesquecíveis. Muito comunicativo e sábio, sua conversa flui, ele é grande apreciador de música e possui gosto musical eclético. Apesar de ter conversado menos do que gostaria com ele, aprendi naquele dia que seu conselho.


deve ser levado a sério, o que ele diz é sagrado. Sua palavra falada é sagrada porque ele sabe o que diz e por ser uma energia divina, traz cura e sabe mais do que nós, pessoas humanas. O que é dito por ele ganha amplitude e alcance quando falado junto com as pessoas que o cultuam.


A canção quando cantada nos ensaios do Bloco ou na Avenida adquire um efeito maior por ser reverberada por centenas de pessoas durante a celebração carnavalesca. A dança vibra o que é enunciado, amplificando o modo como esse canto é sentido. Com a dança, a canção alcança outras relações com o que ganha corpo pelos ritmos e pelos gestos dançados. Em 2020, o tema da canção do carnaval foi “BAMBURUCEMA SITEMBU UA VIRARA - Bamburucema, vento de transformação”. Em 2021, o tema é “NKISSES MBUTU YA KIZOLA - Nkisses fruto, semente do amor” e a canção se refere a Lemba, divindade ligada ao princípio de criação do universo e associada ao estabelecimento da paz. Como mencionado por Mãe Lúcia no Encontro Literário Ori (disponível em: www.youtube.com/watch?v=vpU6bxG5Ba4&t=1988s), o bloco acontece no sentido de cuidar da vida do ser humano, tanto espiritualmente quanto no trabalho do dia-a-dia ao longo do ano e tendo uma função ligada à manutenção do equilíbrio físico (do corpo, das pessoas, da comunidade). Além disso, a história das religiões de matriz africana é contada através da música e da forma de dançar, sem necessariamente revelar canções e fundamentos praticados no interior dos terreiros. A história do Bankoma, que comemora 21 anos, remonta a linhagem de Joãozinho da Goméia e Mãe Mirinha de Portão, autoridades importantes na história do candomblé e ancestrais do terreiro.


O único bloco de fora de Salvador a desfilar no circuito da capital, O Furacão da Alegria (como é denominado pelos foliões), adaptou seu Carnaval de 2021 e realizou apresentações online pelo seu canal do youtube (live realizada no sábado de carnaval, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=zN0uu3HnpQA). Insistir em festejar a vida é uma tática de encanto que move as pessoas a resistir aos processos que entristecem e mortificam o viver. É também um modo de celebrar a presença daqueles que amamos e que vivem no amor que lhes dedicamos, ainda que seu corpo físico não se faça mais presente. Festejar e partilhar o que se desfruta é uma maneira de multiplicar o que se tem através da magia dos encontros. Multiplicar a digna revolta, a alegria, o que vibra nas histórias compartilhadas, nas memórias afetivas. Sem a radicalidade da rua e sua imprevisibilidade, resta acolher o que nos alegra com paciência, aguardar o momento oportuno de fazer valer fluxos e encontros, cultivando a alegria na miudeza dos dias.


Dedico essa breve crônica a seu Martin Pescador, a quem adoro.


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