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ENSAIO: PORQUÊ PROIBIDÃO OU DA EXPERIÊNCIA URBANA PAREDÃO

Atualizado: 11 de mai. de 2021


Foto: Victor Bastos


Como professor de dança com postura antropológica, sempre me interessei pela temática da juventude e suas relações com as artes do corpo, principalmente nas produções de artes urbanas. Foi na iniciação científica que comecei a me aprofundar nessa temática e, desde então, abracei o paredão como fluxo de produção de conhecimento em dança. Sendo também cria das políticas de ações afirmativas universitárias e com o compromisso de produzir formulações críticas e analíticas condizentes com a lógica de existência das danças do paredão, me preocupo em narrar essas manifestações artísticas situando e confrontando historicamente seus acontecimentos.

O paredão é, a grosso modo, encontros - que acontecem geralmente aos sábados em determinados trechos de regiões periféricas da cidade - entre carros que possuem equipamentos de sons potentes, moradores e vendedores ambulantes de produtos diversos. Tais encontros geram diversas situações coreográficas, principalmente entre o público jovem das favelas, e mobilizam a comunidade, gerando renda e fortalecendo laços de sociabilidade - aqui cabe ressaltar uma interessante diferença entre lucro (capital) e renda (sustento).


Durante o processo de aproximação da experiência do paredão, a pergunta (ou indagação) feita por colegas da universidade e de pesquisa que mais escutei e acolhi foi: por que se debruçar em uma manifestação artística que toca música do tipo "proibidão" [1]?


Inicialmente essa indagação nunca foi um problema no meu processo de aproximação com essa experiência, muito pelo contrário, eu entendia que essa questão aparecia por causa da ousadia presente nas letras das músicas. Ousadia que também fazia parte da composição das corporalidades daquelas pessoas e que era condizente com o modo de existir na periferia. Além disso, minha escolha e facilidade nessa aproximação se deve ao fato de eu ter construído relações de amizades que foram estabelecidas com cada jovem envolvido durante meu processo de estudo. Eu compreendia, portanto, tacitamente a relação que a música estabelecia na experiência do paredão. Antes de ser meu objeto de estudo, o paredão já era uma realidade no bairro onde vivia, mesmo que eu não entendesse sua manifestação. Porém, eu nunca tinha feito o exercício de formular uma ideia sobre essa experiência específica até passar pelo processo dissertativo onde a experiência se submeteu à lógica. Afinal, quando se está no paredão, não há preocupação com a formulação conceitual de sua experiência. O que importa nestes encontros é brincar depois de crescido, é possuir a malandragem de crescer sem perder a infância, é dançar. E se antes eu dançava vendo outras relações da experiência de lazer, diversão, curtição, hoje eu danço concentrado no conjunto de relações implicadas política e esteticamente na sua manifestação.

Primeiramente ouvir ou cantar as músicas do tipo proibidão não significa necessariamente aderir ao mundo do crime ou às suas facções, muitos cantores de pagode ou de funk, por exemplo, fazem versões de seus sucessos a pedidos dos traficantes por medo de se indispor com eles e/ou por conviverem na mesma comunidade. Já outros MC’s o fazem apenas por gostarem do estilo proibidão ou por se identificarem com o modo “vida loka’ e, com isso, flertam com outros tipos de valores e/ou atitudes sociais, como o culto à violência e a ideia do ‘’que é proibido é mais gostoso’’. Assim, adotam valores invertidos da sociedade em geral e, de certa forma, isso lhes confere status.


Ao contrário do que muitos costumam afirmar, as músicas do tipo proibidão não têm nenhuma relação direta com o tráfico de drogas. O problema real é que o pagode e o tráfico co-existem em um mesmo território. O ambiente periférico, que também é o espaço de negociações, de produção econômica e de disputa, precisa apelar para uma política de boa vizinhança que garanta a sobrevivência de ambos. Essas são as formulações de convivência, muito comum nos guetos das periferias brasileiras.


Ao observar as narrativas presentes nas letras das músicas percebe-se que, em geral, contam experiências dos jovens com seu tempo ou discorrem sobre danças instigantes que servem como trilha da música. O diálogo entre os bits da música ocasiona uma comunicação direta e ativa com os movimentos corporais. Os cantores de pagode baiano as dedicam para a comunidade e, como muitos vêm desses lugares, isso ganha um contorno significativo interessante, pois as músicas capturam fragmentos da realidade vivenciada por jovens negros e pobres em seus momentos de liberdade e libertação.


É interessante, para não dizer paradoxal, perceber o resultado do deslocamento dessas músicas para contextos em que não se vive a realidade de perseguição ou cerceamento de sociabilidades festivas comuns nos espaços periféricos. Esse deslocamento, potencializado pelas mídias, cria a ideia de que essas músicas narram o mundo do crime e uma das consequências disso é o aparecimento do fetiche do “bandido legal”, de modo que os jovens de classe média acabam se filiando filosoficamente às facções criminosas através do consumo desse tipo de música. Possíveis justificativas acerca do interesse desses jovens de classe média a essas manifestações culturais talvez sejam: a decadência dos valores da Igreja, família e escola e a sedução desse jovens pelas imagens da favela produzidas pelas mídias e redes sociais, que habitualmente ligam esses territórios à ideia de violência e poder, projetado na figura do bandido. Isso tudo é muito curioso, pois não são todos os jovens que frequentam os bailes de favela ou paredões que se identificam com sua filosofia empírica, alguns deles as frequentam pela falta de opção de lazer, pois a cidade está cada dia mais cara, com muitos espaços inacessíveis a jovens negros e pobres. De um lado o capitalismo cria a imagem da favela e do “bandido legal” para serem consumidos pela classe média e, de outro, são negados aos jovens negros favelados os diretos de trabalho, de cultura, de lazer e de consumo. Não é somente a repressão policial que faz com que os paredões sejam as únicas opções para muitos jovens negros e pobres, falta justamente políticas de acesso efetivas para juventude brasileira, politicas que criem possibilidades de expansão criativa para além de suas quebradas.


Antes de agosto de 2013, a então Presidenta da República sancionou o estatuto da juventude, reconhecendo os jovens como cidadãos ativos e transformadores da sociedade. Até então, os jovens eram reconhecidos como cidadãos de segunda classe, logo, era atribuída a eles uma série de estigmas sociais. Podiam facilmente ser taxados como delinquentes, bandidos, vadios, desocupados, violentos etc. Isso é fruto de uma visão adultocêntrica da vida pública, que inferioriza a percepção dos jovens na realidade compartilhada e que ignora e desrespeita seus modos de vida. Esse descaso político e a necessidade de sobrevivencia empurram os jovens negros e pobres para mercados ilícitos e ilegais. É o mesmo movimento que ocorre com os proibidões que, ao serem rejeitados pelo tratamento da indústria cultural oficial, são acolhidos com sucessos nas comunidades e informalidade cultural.


Os jovens que curtem as festas paredões não nutrem simpatia pelo tráfico, o que leva os jovens aos paredões não é o consumo de drogas, de bebidas alcoólicas e os encontros amorosos, o que move e motiva os jovens negros e pobres a irem aos paredões é a dança. E essa dança não brota num passo de mágica, ela é elaborada diariamente com vivências corporais que habilitam suas corporalidades.


Quando uma música toca no proibidão, sempre existe alguém que conhece alguém que entrou pro mundo do crime ou conhece alguém que está sofrendo apertos de mentes por sua inserção neste mundo ou, numa realidade mais trágica, conhece alguém que, infelizmente, morreu nessa vida. Isso acontece porque as pessoas das comunidades não possuem a visão de família como propriedade privada, a família nesses territórios é tomada como valor comunitário e coletivizado e isso define muito do Brasil. Os mais pobres, os mais excluídos e os mais negros expandem a ideia de família para o coletivo. Na adversidade, quem está mais próximo de você precisa ser sua família, toda sua rede se torna sua família, todos os espaços de sociabilidade são sua família. Isso tudo se manifesta no paredão: a possibilidade de se dissolver na multidão, de dançar junto, a presença dos afetos, da ousadia, da dor. É essa simultaneidade proporcionada pela fricção desse conjunto de relações - legal e ilegal, dentro e fora, individual e coletivo - que se produz uma “corporalidade linha de fuga” que possibilita o trânsito e o fluxo entre os regimes postos no espaço periférico. Sendo cria do confronto, o corpo que dança o proibidão no paredão proporciona a aquisição de conhecimento que auxilia na composição de novas variações de combinações corporais e, por isso, a experiência da vida extraordinária não pode ficar submetida aos caprichos moralizantes e capitalistas que criminalizam modos de dança e de vida.


[1] proibidão é um estilo musical surgido durante a década de 1990 nas comunidades de algumas capitais brasileiras. Comercializados de forma clandestina, os proibidões tratam da realidade das comunidades.



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